Por Pedro Almeida Jorge - Membro da Ordem dos Economistas nº 15846

Façamos uma nova viagem ao passado. Desta vez, ao dia 3 de fevereiro de 1861. Nesse dia nascia, no Funchal, Edwin Cannan, um dos principais economistas britânicos do início do século passado. Os problemas de saúde de sua mãe haviam levado a família a mudar-se para a Madeira, onde acabaria por falecer apenas 18 dias depois do parto. Dado esse trágico desfecho, e sem mais motivo por que ali ficar, Edwin e seu pai voltaram para Inglaterra. Porém, o facto mantém-se: Cannan era madeirense.
Se tal não for razão suficiente para aqui, na Ordem, o recordarmos, há certamente outras razões de mérito pessoal que assim o exigem. A sua obra é demasiado extensa para que aqui nos alonguemos numa descrição detalhada, mas mencionaremos os seus feitos mais reconhecidos: autor da aclamada obra crítica sobre a História das Teorias da Produção e Distribuição na Economia Política Inglesa, desde 1776 até 1848 (de 1894), bem como de um par de manuais introdutórios de economia, foi também editor das Lições sobre Justiça, Polícia, Receita e Armas de Adam Smith, e editor responsável pela talvez mais popular edição da Riqueza das Nações, do mesmo autor – edição essa que serve de base à versão portuguesa da Fundação Calouste Gulbenkian – bem como responsável por uma republicação do famoso Bullion Report de 1810, peça chave no debate sobre a convertibilidade da libra britânica no início do séc. XIX.
Ainda assim, e apesar de tão relevante repertório, as principais marcas deixadas por Cannan foram provavelmente a sua abordagem “common-sense” aos problemas económicos, sempre pragmático e sem pretensões de excessivo refinamento formal, e a admiração e exigência que incutiu nos seus alunos – esteve à frente do departamento de economia da London School of Economics durante praticamente 20 anos, estabelecendo essa faculdade como um dos principais centros de estudo da economia em todo o mundo, ascensão que culminaria na brilhante geração que ali estudou e ensinou nos anos 30, liderada por Lionel Robbins, seu aluno e admirador.
Elogiado na monumental História da Análise Económica de Joseph Schumpeter, é Friedrich Hayek quem citaremos para uma apreciação do seu modus operandi:«[Cannan] interessava-se principalmente pela eficácia e aplicabilidade da economia na promoção do bem-estar humano, e para isso a tarefa mais urgente era torná-la compreensível. Nenhum economista contemporâneo se dedicou de forma mais decidida e com mais sucesso a este objetivo. (...) Nunca sentiu que a sua dignidade o impedisse de clarificar verdades elementares uma e outra vez e sob novas formas.»
«Com a sua morte, não só os economistas perdem um dos seus mais veneráveis e encantadores professores, como o mundo também se vê privado de um dos mais enérgicos e bem sucedidos combatentes de ofuscações económicas.»
Um excelente exemplo da sua vocação prática e ativista enquanto economista é a compilação de vários dos seus ensaios escritos entre 1914 e 1926, intitulada An Economist’s Protest, o protesto de um economista. Anos mais tarde (1975), também uma compilação de artigos de Milton Friedman viria a assumir esse título, provavelmente em referência ao precedente de Cannan.
Faz, portanto, todo o sentido que fechemos esta nossa nota biográfica com uma amostra do estilo combativo e determinado de Edwin Cannan. Voltando a um dos temas já por nós abordados em anteriores artigos, e considerando a recente aprovação do Despacho n.º 5503-A/2020, que de novo estabelece um limite de 15% para o lucro obtido com a comercialização de certos produtos, acredito que serão do interesse geral as seguintes palavras de Cannan no seu prefácio à obra mencionada:
«O que deveria eu responder se alguém tivesse a impertinência de me perguntar: "O que fizeste na Grande Guerra?” De nada vale dizer que, imediatamente após o seu começo, ofereci os meus serviços como ceifeiro, pois o jovem que apontou o meu nome, evidentemente, considerou-me demasiado velho (aos 53, há treze longos anos!), e nunca nada daí resultou. Também não ficaria melhor se dissesse que me sentei durante bastante tempo em várias comissões, porque toda a gente o fez, e nunca nada dali resultou. A melhor resposta que me ocorre é: "protestei".»
«A maior parte do meu esforço visou combater algumas ilusões extraordinárias que se apoderaram das mentes do povo e dos seus governantes. A primeira delas foi a ideia de que, a menos que toda a gente continuasse a gastar como antes, havia o risco de desemprego. Isto deu origem ao que eu chamei de primeiro slogan da guerra, “Business as usual”. Este durou pouco tempo e depressa cedeu perante uma ilusão muito mais perigosa: a crença de que tudo devia ser vendido ao mesmo preço que antes da guerra, e que quem vendesse algo a um preço superior a esse era um extorsor tão profundamente tingido que uma nova palavra, "especulador" [profiteer], tinha de ser inventada para o descrever.
A regulamentação dos preços, com a intenção de os manter baixos, começou então a ser implementada pelo Governo, o que, como é óbvio, rapidamente levou ao que ficou conhecido como sistema das filas de espera; quando escasseava a oferta de um artigo e a regulamentação impedia o seu preço de subir, levando a que a procura não se retraísse, como costuma acontecer com os aumentos de preço, quem queria comprar o produto em questão tinha de esperar numa fila, de modo que os da frente obtinham a quantidade que desejavam e os do fim não conseguiam nada. O rumo das coisas revelou uma completa falta de compreensão, ainda que genérica, da função dos preços. Daí o aparecimento, nesta coleção, de muitos protestos, dos quais o mais geral é “Porque é que alguns preços deveriam subir”.»
Fazemos nossas as palavras de Hayek sobre este madeirense que merece ser recordado: «oxalá tivéssemos, nos últimos anos, muitos mais economistas com as mesmas capacidade e vontade de protestar que Cannan!»

++++++++++++++++++++++++++++
Notas bibliográficas:
Resumo biobibliográfico de Edwin Cannan disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Edwin_Cannan ; https://www.hetwebsite.net/het/profiles/cannan.htm ; e no obituário escrito por A.L. Bowley no vol. 45 do The Economic Journal
An Economist’s Protest de Cannan disponível em: https://archive.org/details/in.ernet.dli.2015.84265/page/n5/mode/2up
Apreciações sobre a sua vida e obra disponíveis em: Contra Keynes and Cambridge, de F.A. Hayek; obituário escrito por Lionel Robbins no vol. 45 do The Economic Journal; e History of Economic Analysis, p. 832, n4, de Joseph Schumpeter.

Artigo do colega Pedro Almeida Jorge, acerca de Edwin Cannan, “O madeirense que protestou”